domingo, setembro 30, 2007
A vida passa depressa. Dei-me conta disso hoje enquanto andava às compras. Não, não foi só o frenesim das pessoas a andarem como formiguinhas de um lado para o outro, a empurrarem carrinhos de bebé ultra-volumosos contra as canelas das outras formiguinhas, a puxarem sacos que se prendem nas carteiras das outras formiguinhas. Não foi só a fome e o desconforto nos pés a dar-me sinal de que haviam passado já algumas horas sem que eu desse por isso. Não foi o sol a rasgar o céu em lume frio e a mudar de ângulo, e a dizer-me que o tempo passa.
O que realmente me deu a percepção de que o tempo passa foi o Sérgio Renato.
Quando éramos pequenos e não pensávamos nestas coisas do tempo e do espaço, houve uma altura em que andei na mesma turma do que o Sérgio Renato. Ele era um menino mais magro, mais pequeno, mais frágil do que todos os outros meninos, e do que a maior parte das meninas, com os seus óculozinhos e a sua maneira destabalhoada de correr. Era o menino que mais piadas ouvia por segundo quadrado.
Hoje vi, de relance, o Sérgio Renato. Ainda magro, ainda de aspecto magro, ainda com os seus óculozitos. Ainda a fazer estranhos movimentos com o pescoço enquanto ouve música. "Está o mesmo..." - pensei - "embora maior e mais velho". Pensei nisto com um sorriso, que logo se esmoreceu. Pareceu-me pelo seu olhar que poderia ainda estar a ouvir mentalmente a panóplia de asneiras gozantes da sua infância e juventude.
Estou a ficar velha, o Sérgio Renato parece estar a ficar velho, e era tão pequeno e tão frágil que eu nunca pensei que ele pudesse alguma vez envelhecer. Pensei que fosse ficar pequeno e frágil para todo o sempre!
A vida passa depressa...
Estou com leve dor de garganta, cefaleia, uma tossiqueira estranha, doi-me o queixo por causa de um "parece-que-bati-com-o-queixo-durante-um-ataque-de-sonambulismo"... e vi o Sérgio Renato.
O que mais terá o dia para me oferecer?
So far, parece o dia das bruxas... miaaaau!! fssss..........
domingo, setembro 23, 2007
O Outono...

Hoje apeteceu-me comemorar a entrada do Outono... apeteceu-me fazê-lo com um cappuchino da Dona Emilinha, a ver o pôr-do-sol, a dizer asneiras e a filosofar sobre concepções de espaço-tempo. Apeteceu-me fazê-lo a ouvir musica baixinho, ou apenas a chuva na janela. Apeteceu-me ouvir a chuva e os trovões, mas não lhes prestar realmente atenção.
Hoje está sol. Uma parte de mim quer calçar as luvas, e por momentos sentir as mãos a quase desfalecerem na calma morna de ainda existirem.
Apeteceu-me a sensação do Verão dentro das luvas, com o Outono a fustigar a minha janela.
Tenho ainda o Verão à volta do tornozelo, e uma vontade grande de saltar por cima das poças de água, e do medo que tenho do frio. E de qualquer medo.
Etiquetas: Outono
sábado, setembro 15, 2007
A minha dança da chuva
"O brilho em seu rosto era a única cintilância na aridez da paisagem. Naquelas esqueléticas paragens só chove quando os joelhos dos bois tocam o chão, as mulheres cantam e os homens rezam. Mas fazia tempo que não havia bois, há muito que as mulheres tinham emudecido e os homens perdido a crença.
Todavia, aquele lugar nem sempre fora um território isolado, longe do mundo, do outro lado do tempo. Há trinta anos - quando Zero Madzero nascera - ali se espraiavam as chamadas mphalas verdes, as férteis colinas dos montes Camuendje. Converteram-se numa ilha esquecida quando se encheu a albufeira da barragem de Cahora Bassa. o Zambeze inchou e os riachos de Nkazi e Muzenguezi coalesceram, sepultando vales e terras baixas. Quando as águas subiram, os mais-velhos sorriram, satisfeitos. A Bíblia também está a ser escrita na nossa terra, diziam. Mas depois a inundação conteve-se e sobraram montes, cabeços e outeiros.
- Nem o dilúvio merecemos, resmungavam os velhos.
Nascemos para ser escolhidos, vivemos para escolher.
Podia-se dizer de Madzero que era tonto mas, ao menos, ele escolhera viver nesse lugar de que se esqueceram os caminhos. Há anos que ele quase não cruzava com alma vivente. A única pessoa de seu convívio era Mwadia, essa que tinha corpo de rio e nome de canoa."
(Mia Couto, in O Outro Pé da Sereia)