A minha dança da chuva
"O brilho em seu rosto era a única cintilância na aridez da paisagem. Naquelas esqueléticas paragens só chove quando os joelhos dos bois tocam o chão, as mulheres cantam e os homens rezam. Mas fazia tempo que não havia bois, há muito que as mulheres tinham emudecido e os homens perdido a crença.
Todavia, aquele lugar nem sempre fora um território isolado, longe do mundo, do outro lado do tempo. Há trinta anos - quando Zero Madzero nascera - ali se espraiavam as chamadas mphalas verdes, as férteis colinas dos montes Camuendje. Converteram-se numa ilha esquecida quando se encheu a albufeira da barragem de Cahora Bassa. o Zambeze inchou e os riachos de Nkazi e Muzenguezi coalesceram, sepultando vales e terras baixas. Quando as águas subiram, os mais-velhos sorriram, satisfeitos. A Bíblia também está a ser escrita na nossa terra, diziam. Mas depois a inundação conteve-se e sobraram montes, cabeços e outeiros.
- Nem o dilúvio merecemos, resmungavam os velhos.
Nascemos para ser escolhidos, vivemos para escolher.
Podia-se dizer de Madzero que era tonto mas, ao menos, ele escolhera viver nesse lugar de que se esqueceram os caminhos. Há anos que ele quase não cruzava com alma vivente. A única pessoa de seu convívio era Mwadia, essa que tinha corpo de rio e nome de canoa."
(Mia Couto, in O Outro Pé da Sereia)
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