Seco as unhas. É uma e meia da manhã do dia 1 de Janeiro de 2007, e eu seco as unhas. Seco também alguns pensamentos que foram lavados e enxaguados, para que, não se renovando, não carreguem ao menos o peso do tempo, do uso. Seco sentimentos que nadaram até à margem, e anseiam por um lugar calmo, abrigado, enxuto, onde possam esquecer por momentos a viagem.
Seco as unhas. Amanhã trabalho, não sei a que hora, pois está por combinar, ainda. Mas prevejo que seja cedo. E, sendo, não terei disponibilidade mental para as pintar de manhã com o frio. Não terei disponibilidade mental para reconhecer os sentimentos que chegam a nado, nem para colocar molas nos pensamentos que secam no meu estendal neuronal.
Penso. A passagem de ano sempre me contrariou. Muitas vezes imagino como seria comemorar a passagem de ano a meio do ano. Quer dizer, "a meio do ano". Nessa altura seria o início do ano... Bem... Avante. Como seria comemorá-la em Março. Ou Abril, Maio. Mas no calor. A Terra iria da mesma forma completar uma volta completa, pois a noção de "completa" depende do instante em que se inicia a observação. Do modo como comemoramos, o instante são as zero horas de hoje. Foram.
Instante. Pergunto-me se haverá um instante em que não estamos num ano, nem de facto no outro. Como num salto, em que, contrariamente ao passo, não estamos atrás, nem à frente no piso, mas suspensos no ar. Assim, penso que existirá um instante, infinitesimalmente pequeno, em que já não estamos em 2006, mas não necessariamente em 2007. Parece uma noção parva, mas se aplicarmos uma modulação do Paradoxo de Zenão, facilmente vemos que se tivermos 2006 "e depois" 2007, há como que uma união de fronteiras. Mas se virmos ao pormenor, o que acontece de facto? o que há entre essas superfícies? MAis 2006 dum lado, e mais 2007 do outro. E entre? Mais 2006, e mais 2007? Um pós-2006, e um pré-2007? Mais ao pormenor ainda... e entre? esse tempo... ou 2006 prolonga-se indefinidamente... e 2007 começou há muito, muito tempo atrás? Vejo os anos como hipérboles, em que às 0h "tendem para zero", e às "quase" 0h, 365(6) dias depois "tendem para mais infinito". Ou não. 2006 ainda não acabou. 2007 começou a nascer faz já muito tempo, muito mais do que estes 106 minutos do novo ano civil. Causa e efeito.
Penso. Fecho as contas todos os dias, todos os dias pode nascer um novo ano, e eu não sei. Todos os dias peço desejos. Todos os dias penso nestas coisas, sem passas, sem espumante, sem contagens decrescentes. Mas todos os dias começa para mim uma coisa bonita.
Hoje, as coisas pequenas estão a secar. Dispo-me delas devagar, e deixo-me estar o mais pura possível, sem ataduras, sem falsas peles, sem resguardos. Hoje deixo-me estar ao relento daquilo que sinto, deixo-me estar despida das coisas pequenas. Amanhã, ou mais logo, virá a altura de apanhar os pensamentos e os sentimentos do estendal, de lhes dar um novo brilho, de os usar e combinar.
Hoje, hoje seco as unhas. E deixo-me flutuar no tempo, em que não é 2006, nem 2007.