quarta-feira, julho 26, 2006

Espírito daltónico

"Hoje, o meu espírito está daltónico. Hoje parece-me tudo cinzento, parece-me tudo tristemente vazio, como se o sol tivesse de repente desaparecido e eu estivesse a viver uns oito últimos minutos de luz, que pretendem durar todo o dia. No entanto, hoje as cores fascinam-me. Aquelas que eu sei que existem porque sim, porque são naturais. Porque não as vejo hoje, mas tenho reparado nelas todos os dias,na esperança que hoje as pudesse contemplar com o tempo que merecem. Mas hoje está tudo estranhamente cinzento...
As coisas que acabam deixam-me num estado de introspecção silenciosa, à qual não consigo fugir. É como se tivesse uma nessecidade de fazer luto por essa coisa que acaba. E fica tudo a parecer cinzento, como que indefinido, como que à espera que eu pinte a realidade nas cores que mais me fizerem falta. Hoje, sinto falta do amarelo. Daquele amarelo que costuma aparecer quando fecho os olhos, e que ultimamente se tem revelado já sem a emergência do petróleo borbulhante de outrora, sem as ondas daquele negro doentio que engoliam sem piedade o meu amarelo, quando eu, pequenina, tentava adormecer. Todas as noites, de olhos fechados, eu travava uma luta com o meu cérebro, para que o manto de petróleo recuasse, se diluísse, revelando de novo o amarelo pacífico que jazia por baixo, sereno.
De uns tempos para cá, essa sensação de o meu cérebro ser tomado por uma nuvem negra e asfixiante dissipou-se, calou-se, rendeu-se, talvez. Mas hoje, nem o amarelo nem a paz de o ver de novo. Fecho os olhos, e há o cinzento. Espero chegar ao fim do dia tendo já recuperado as minhas cores, tendo já trabalhado o luto pelas coisas que acabaram, vendo já renascer o amarelo sereno. Vendo renascer todas as cores, aquelas em que tenho reparado ao longo do último mês. Todas aquelas que existiram apenas por breves instantes, só para que eu reparasse nelas, e que eu negligenciei, talvez por pressa ou desatenção. Todas essas, as que nos são ensinadas na escola, e as outras, aquelas que só existem no por-do-sol reflectido no chocolate-quente, que só existem nas lágrimas que pousam naquele tom de pele, que só existem naquela violeta-branca de manhãzinha. Aquelas que ninguém nos ensina e que só existem para que reparemos nelas. Creio que devem existir espíritos cronicamente daltónicos, que não se apercebem de como estas cores são tão diferentes. Espíritos para quem o sol é sempre amarelo, mesmo que esteja reflectido na bebida de chocolate, para quem as violetas brancas são apenas brancas, e para quem as lágrimas parecem sempre transparentes, porque são só água e sal, independentemente da cor dos olhos ou do tom de pele de quem as chora. Não é uma questão de acuidade visual, é mais como se tivessemos uma fóvea mental e uma sensibilidade especial para as tonalidades da vida."


(RDurães, 10 de Fevereiro de 2006)

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